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sábado, 21 de outubro de 2017

Sobre pensar com a própria cabeça: ou sobre a originalidade e a autonomia filosóficas

Alfred N. Whitehead

Quem me conhece sabe que defendo que aprender filosofia é aprender a filosofar e aprender a filosofar implica aprender a pensar com a própria cabeça sobre os problemas filosóficos e as tentativas já feitas de solucioná-los, eventualmente oferecendo uma nova compreensão do problema ou uma nova solução. Não raro essa posição recebe duas críticas principais. Geralmente essas críticas são apresentadas de modo muito superficial. Todavia, as levo em consideração porque são muito populares.

A primeira crítica eu vou chamar de complexo de Whitehead. Alfred N. Whitehead foi um filósofo da virada do século XX que escreveu, entre outras coisas, a monumental obra de lógica Principia Mathematica, junto com Bertrand Russell. Em Processo e Realidade (1929), ele escreveu:
A caracterização geral mais segura da tradição filosófica européia é que consiste em uma série de notas de rodapé a Platão.
O ponto é que nada de original se pode produzir em filosofia depois da obra filosófica de Platão. Por isso, só nos resta ficar fazendo notas de rodapé sobre a obra de Platão ou sobre as notas de rodapé já feitas sobre a obra dele, ou sobre as notas das notas, e assim por diante. Essa crítica mostra que aquele que a formula pensa que pensar com a própria cabeça implica ser original. Dado que seu complexo de Whitehead o leva a pensar que ser original é impossível em filosofia, ele conclui que pensar com a própria cabeça é impossível em filosofia. Resta-nos apenas a tarefa de repensar o que já foi pensado. Novamente: essa maneira de apresentar essa primeira crítica é muito melhor do que normalmente é feito.

A segunda crítica está relacionada à primeira do seguinte modo: se insistimos na importância de se pensar com a própria cabeça em filosofia, e que podemos, sim, ser originais nessa tarefa, somos acusados de arrogância, ou orgulho, ou pretenção, ou vaidade, etc. Afinal, quem somos nós para pensarmos que podemos nos comparar com os grandes filósofos da história da filosofia? Por não sermos humildes, não reconhecemos nosso lugar de meros comentadores da história da filosofia e nos arrogamos a capacidade de pensar com nossa própria cabeça. Temos a audácia de nos chamarmos de filósofos! No limite, filósofo foi apenas Platão!

A primeira crítica é cognitiva, enquanto que a segunda é moral. Todavia, creio que, em última análise, ambas são motivadas por um vício moral: a covardia. Mas antes, vejamos a primeira crítica.

A frase de Whitehead, na melhor das hipóteses é um exagero retórico. Ela é literalmente falsa. Não sei como encontrar as filosofias de Kant e Descartes em Platão, para citar apenas dois exemplos ilustres. Mas gostaria de citar um exemplo não ilustre apenas para exemplificar o caso de alguém que não é um grande filósofo e, no entanto, sacudiu o cenário filosófico do século XX com um artigo de três páginas. Trata-se do artigo "É a crença verdadeira justificada conhecimento?", de Edmund Gettier, no qual ele apresenta dois contra-exemplos da definição tradicional de conhecimento. Essa definição remonta a Platão, é certo. Mas essa crítica certamente não pode ser vista como uma nota de rodapé ao texto de Platão sobre o conhecimento. É uma crítica original, sem precedentes na história da filosofia. Outro exemplo claro é o paradoxo de More.

Mas mesmo que fosse impossível ser original em filosofia depois da obra de Platão, pensar com a própria cabeça não implica ser original. Pensar por conta própria significa assumir a responsabilidade por certas teses, ou por certas perguntas; significa assumir a responsabilidade por justificar certas teses, ou defendê-la de críticas, ou pelo entendimento e importância de certas perguntas, tentando aclará-las e justificar sua importância, sempre que assim for solicitado. Assumir essa responsabilidade envolve riscos que covardes não estão dispostos a assumir. Pensar com a própria cabeça pode implicar reconhecer que o que pensamos com nossas próprias cabeças já foi pensado antes por grandes filósofos e que, por isso, estamos em boa companhia. Mas ao menos tivemos a coragem para fazer isso! Tivemos a coragem para conquistar nossa autonomia! Porque, afinal, o que vale mais? A originalidade ou a verdade? Melhor é ser original e falso, ou ser não-original e verdadeiro? Se defendo com minha própria cabeça uma tese que um grande filósofo defendeu no passado, isso significa que estou disposto a argumentar a favor dela sempre que me for solicitado, seja repetindo argumentos já usados para defendê-la, seja dando novos argumentos. Não estarei delegando essa defesa a outro.

Teses filosóficas não são propriedades privadas. Uma vez que eu dou assentimento a elas, elas passam a ser minhas, mesmo que eu não seja o primeiro a tê-las formulado. E serem minhas, nesse caso, significa somente isso: por dar assentimento a elas, tenho responsabilidade sobre elas, devo responder por elas! Por isso que acho que essas críticas à tese de que filosofar implica pensar com a própria cabeça são a expressão de covardia: quem as faz tem medo de assumir as referidas responsabilidades, delegando aos grandes filósofos qualquer ônus, mas também qualquer bônus, por terem pensando como pesaram.

Por fim, gostaria de apontar para um outro sintoma dessa covardia intelectual: acreditar que quem escreve em primeira pessoa está sendo arrogante, etc. A menos que o texto tenha sido escrito por mais de uma pessoa, qual razão haveria para eu não usar a primeira pessoa? Para reconhecer o óbvio fato de que não estou inventando a roda novamente?


Um comentário:

  1. Pensar dói, quem pensa menos sofre menos. Mas pensar, e pensar bem (pensar com sabedoria) é o que torna o Homem menos animal, menos propenso a errar por pouca coisa. Apenas menos animal no sentido de afastar-se do instintivo puramente. Parece que há filósofos com cabeça de animal, ou seja, pensam, mas sem sabedoria. Filosofar por poder pensar qualquer coisa sobre qualquer coisa não revela nada de nobre. Filosofar sem fundamento moral é apenas uso da capacidade de pensar sem realmente se importar com as consequências das ideias resultantes. Nada mais que um Touro-filósofo ou um coelho-filósofo, ou um tigre-filósofo, ou uma minhoca-filósofa. No fim, um vazio terrestre. Futura irrelevância , inabilidade e extinção da capacidade de agir, tanto para o sábio quanto para o tolo. Sei lá. Que importa? Irrelevância humana.

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