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segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Kaplan, pragmática vs semântica

David Kaplan

Uma distinção tradicional em linguística e em filosofia da linguagem é aquela entre semântica e pragmática. Enquanto que a semântica seria o estudo do significado literal dos sinais, do seu conteúdo, ou da relação entre os sinais e aquilo que eles significam, a pragmática seria o estudo do uso significativo desses sinais que determina o que é efetivamente comunicado pelo usuário da linguagem, dos sinais. Normalmente esse par de disciplinas é apresentado junto com a sintaxe, que seria o estudo do modo de combinação de sinais da linguagem. Essa distinção entre sintaxe e semântica não é livre de contrqovérsia.[1] O modo como essa distinção é tradicionalmente entendida a partir de um modelo de análise composicional forte (que explicarei mais adiante) da linguagem parece-me problemático. Vejamos por meio de um exemplo o que tenho em mente a respeito dessa maneira tradicional de traçar a distinção:
(1) Todos estão presentes.
Suponha-se que a frase (1) seja enunciada no seguinte contexto: uma reunião de um determinado grupo está para começar e o líder desse grupo pergunta se todos estão presentes, ao que alguém responde enunciando (1). A reunião então se inicia. De acordo com a visão tradicional, (1) significa literalmente que absolutamente todas as pessoas estão presentes no local da reunião. Esse significado é determinado, em última análise, pelo significado das partes da frase mais a sua sintaxe, pelas regras de combinação de suas partes. O significado literal de "Todo" seria o mesmo do quantificador universal do cálculo de predicados. Todavia, é claro que o que a pessoa que enuncia (1) no contexto recém descrito não comunica o significado literal de (1). O que ela quer dizer é que
(2) Todos os membros do grupo que vão participar da reunião estão presentes. 
Mas ela de fato não enuncia (2). Como então ela chega a ser interpretada como querendo dizer (2), apesar de ter dito (1)? A explicação tradicional consiste essencialmente em dizer que os elementos do contexto de uso de (1), que são objetos de estudo da pragmática, determinam a interpretação segundo a qual quem enunciou (1) naquele contexto quis dizer (2). (2) torna explícito o significado do falante, por oposição ao significado literal (semântico). Mas é claro que essa explicação somente pode ser satisfatória se o significado literal desempenhar algum papel na interpretação da frase, na explicação do seu uso significativo.

Há algum tempo escrevi um artigo em que discuto um outro caso, a fim de criticar tese de Kaplan de que se trata de um exemplo de frase contingente a priori, a saber:
(3) Eu estou aqui.
A frase (3) seria contingente a priori porque a proposição que constitui o seu significado literal é verdadeira sempre que a frase é enunciada, pois ela diz que a referência de "eu", o falante, está no lugar referido por "aqui", a saber, o lugar onde o falante está, o que é um fato contingente, e seu usuário sabe a priori que essa proposição é verdadeira simplesmente porque conhece esse significado literal.

Naquele artigo eu então argumentei, entre outras coisas, que há um uso significativo de (3) em cuja explicação o seu significado literal não desempenha nenhum papel. Suponha-se que João foi capturado, vendado, tornado inconsciente e levado a um local que ele desconhece. Quando acorda, ele não sabe onde está e, portanto, não sabe qual é a referência da palavra "aqui", se dita por ele. Logo, ele não sabe o conteúdo literal da frase "Eu estou aqui", se enunciada por ele. Se ele enunciar essa frase, ele expressará uma proposição que ele não sabe qual é. Kaplan não vê nisso mais do que um resultado curioso da sua semântica. O problema  com esse tipo de análise semântica começa a se tornar evidente quando consideramos que o uso dessa frase nesse contexto é significativo, inteligível. Suponha que alguém está procurando por João, está próximo de onde João está e grite seu nome várias vezes. Ao ouvir chamarem seu nome, João grita "Eu estou aqui". Mas que papel o significado literal dessa frase desempenha nesse contexto para determinar o que o falante quer dizer, dado que o falante não conhece esse significado? Talvez o significado do falante seja determinado pelo que Kaplan chama de caráter da frase: as regras gerais de uso das partes da frase e sua sintaxe as quais determinam, em cada contexto, o significado literal da frase. Mas tais regras, nesse caso, resultam numa espécie de tautologia: a pessoa referida por "eu", o falante (João), está no lugar referido por "aqui", a saber o lugar onde o falante (João) está. Quem procura João não precisa ser informado disso, pois já o sabe, e essa informação é inútil para que ele encontre João. A informação relevante é o lugar onde João está, que nem João, nem aquele que o procura sabem qual é.

Creio que esse tipo de problema da semântica de Kaplan resulta do modelo de análise semântica na qual ela se baseia: o modelo composicionalista forte (exemplificado paradigmaticamente no Tractatus de Wittgenstein). Segundo esse modelo, grosso modo, uma análise semântica de uma linguagem se inicia por se identificar os elementos semânticos dessa linguagem (vocabulário lógico, vocabulário não-lógico básico) e o seu modo de composição, sua sintaxe. Essa base semântica determinaria o significado literal de todas as frases dessa linguagem, independentemente do uso de tais frases.[2] As consequências peculiares desse tipo de análise é que, por um lado, a base semântica determina o significado literal até mesmo de frases inúteis (como "São 5 horas no Sol") e que, por outro, o significado literal de certas frases não desempenha nenhum papel explicativo no uso significativo dessas frases. A primeira consequência é aceita de bom grado por Kaplan e ele a acomoda com a distinção entre significado das frases (semântico) e significado dos proferimentos de frases (do falante). Uma frase inútil não possui significado do falante, embora tenha significado semântico. Todavia, o fato que nem o significado literal, nem o caráter da frase (3) desempenham um papel na explicação do uso significativo de (3) descrito acima é uma consequência que Kaplan não poderia aceitar. Mesmo que a semântica seja independente da análise do uso significativo, ela não pode ser inútil para a explicação desse uso.  Mas essa inutilidade em alguns casos parece ser a consequência de se abstrair o uso significativo e, portanto, a competência pragmática do estudo semântico.

Mas qual seria uma alternativa ao modelo composicionalista forte? Abandonar o composicionalismo por completo? Não, pois ele é o único meio para explicar a criatividade linguística: a capacidade que temos de compreender uma quantidade potencialmente infinita de frases nunca antes proferidas sem a necessidade que o seu significado seja explicado. Creio que um composicionalismo mitigado é inevitável. Todavia, não creio que se possa explicar a base semântica de modo não trivial sem introduzir elementos pragmáticos. Além disso, por ser mitigado, o composicionalismo por si só não é suficiente para explicar o significado de todas as frases da linguagem. Uma tal semântica teria de mostrar que, no contexto descrito, o significado de (1) é o mesmo de (2). Mas, com uma tal tal semântica, não perderíamos muito do poder de generalização nas explicações? Talvez o problema seja essa ânsia por generalização e a negligência a certos fatos linguisticos particulares...

___________

[1] Cf. Zoltan Gendler Szabo (2005) Semantics Versus Pragmatics. Oxford: OUP.

[2] Wittgenstein de fato diz, no Tractatus, que o uso revela o significado. Mas a noção de uso que ele tem em mente é aquele que ele chama de uso lógico-sintático, que não é contextual.


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